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Glauco Mattoso e arte de fazer gaiolas



Por Antonio Filho

Todos os grandes poetas morreram ou deveriam ter morrido. Não de acordo com Vinícius de Morais que considerava Ferreira Gullar, após ouvir a leitura do Poema Sujo, o último grande poeta brasileiro.

Na verdade, nem mesmo eu acredito no que digo. O Brasil ainda tem Manoel de Barros, Francisco Carvalho, Artur Eduardo Benevides e, é claro, Ferreira Gullar.

No entanto, esqueçamos um pouco a grande poesia e fiquemos aqui um pouco com a parca, porca e pérfida poesia. E ninguém mais íntimo dela que Glauco Mattoso, cego pelo glaucoma, podófilo de pés embotinados e sonetista de rotunda satíríase. Haveria uma combinação mais anacrônica e marginal que a que esse poeta condensa em si? Não sei. E desafio a quem se manifeste positivamente e negativamente.

Uma das poucas coisas que se pode afirmar com alguma margem de certeza sobre Glauco Mattoso, é que o poeta é uma máquina de fazer versos e de combiná-los em esquemas de catorze módulos. Ele usa as mais tradicionais e as mais experimentais formas do soneto. Se o resultado merece a pecha de arte fina e nobre é pura questão de opinião, essa irisada e violácea rosa esfincteriana do ânus que todos deveriam ter e proteger muito bem.

Abaixo, portanto, vai reproduzido um texto-aula de Glauco Mattoso. Recomendo a leitura a todos aqueles que se arriscam na difícil arte de fabricar gaiolas, como diria Francisco Carvalho, sonetista de vezo impecável.


Régua e compasso em aula de poesia

Matéria vi@ Cronópios Revista Eletrônica de Literatura

Por Glauco Mattoso

Olá, pessoal! Bom dia p`ra vocês, boa noite p`ra mim! Obrigado por terem vindo! Sentem-se e sintam-se à vontade. Podemos começar? Então vejam, primeiro, os dois sonetos ahi no quadro-negro (p`ra mim) ou no painel luminoso (p`ra vocês) e, em seguida, eu explico cada um:

UM ASSUMPTO NO AR [4006]

É na casa da avó que a familia se vê
toda juncta de novo: uma chance tão rara!
A velhinha, coitada, que tudo prepara,
na cozinha se macta, e elles vendo tevê!

Prompto o rango, elles sentam, do velho ao bebê:
enchem pratos, mastigam. O riso dispara.
De repente, um ao outro, se olhando na cara...
Quem peidou? Que fedor! Não ha dica quem dê...

A vovó, que se abana, de cara amarrada,
pigarreia, olha em volta: parece que viu
uma mosca na sopa, algo assim na salada...

Se cutucam os filhos. Alguem faz um "Psiu!"...
O silencio diz tudo e ninguem falla nada.
"Quem primeiro sentiu, foi dahi que sahiu."


UM ASSUMPTO NO AR [4005]

É na casa da vovó
que a familia almoça juncta.
Ninguem della sente dó:
"Só me querem ver defuncta!"

Alguem peida, e todos só
se encarando. A velha assumpta
doutras coisas. No gogó
morrerá qualquer pergunta.

No seu prato faz que viu
uma mosca a velha, e um fio
na salada de palmito...

"Do primeiro que sentiu,
foi dahi só que sahiu",
diz o dicto, que eu repito.

Vocês notaram que o thema dos dois é o mesmo, claro, mas depois eu entro nessa parte. Agora vamos pegar a regua e medir o verso usado no primeiro delles: doze syllabas. Tracta-se, portanto, dum alexandrino, certo?

Agora vamos pegar o compasso, que, no nosso caso, estou empregando com licença poetica, no sentido do rhythmo e não da mathematica. Mesmo assim, vocês vão notar que até na poesia dependemos da mathematica. Pois bem: para rhythmarmos um verso longo como este, temos pelo menos quattro possibilidades de dividil-o em quattro pés, sendo dois pés de duas syllabas e dois de quattro:

(1) 12-1234-12-1234
(2) 1234-12-1234-12
(3) 12-1234-1234-12
(4) 1234-12-12-1234, ou 1234-1234-1234

Nesta ultima possibilidade, os dois pés de duas syllabas ficam junctos, podendo equivaler a um pé de quattro syllabas. Teriamos então o chamado "alexandrino trimetro", verdadeiro tripé, né? E, para não perdermos a conta, ja que fallamos em trez, resta a possibilidade, menos commum, de dividir o verso em quattro pés de trez syllabas: teriamos assim o "alexandrino agalopado"; ou, ainda, uma forma mais dura que seriam seis pés de duas syllabas.

Para exemplificar, vou usar variantes da mesma phrase. Pela posição das syllabas tonicas (que assignalo em caixa alta), vocês notarão as variações rhythmicas:

(1) "Compasso deu ao Gil, e regua, essa Bahia" [PA-GI-RE-HI]
(2) "Essa Bahia ao Gil ja deu compasso e regua" [HI-GI-PA-RE]
(3) "Deu regua e deu compasso essa Bahia ao Gil" [RE-PA-HI-GI]
(4) "Regua e compasso essa Bahia deu ao Gil" [PA-HI-GI]

Caso usassemos a forma agalopada, teriamos um verso do typo 123-123-123-123:

"A Bahia deu regua e compasso pro Gil" [HI-RE-PA-GI]

Reparem que, aqui, tive de trocar "ao" por "pro" para evitar a synerese
que quebraria o pé: "compass`ao".

Caso usassemos uma divisão hybrida, teriamos, por exemplo, um
alexandrino agalopado do typo 123-123-12-1234:

"A Bahia deu regua ao Gil, e deu compasso" [HI-RE-GI-PA]

Muito bem! Vocês podem notar, agora, que escolhi o typo inteiramente agalopado para o primeiro soneto, pela posição das tonicas:

"Quem primeiro sentiu, foi dahi que sahiu" [ME-TI-HI-HI]

Qual a conclusão que vocês tiram até aqui? Logico: o alexandrino é bem mais trabalhoso que a redondilha maior usada no segundo soneto, na qual só precisamos contar duas tonicas (123-1234), certo? Aqui é que a porca torce o rabo. O que significa, de facto, "dar trabalho", em poesia?
Calcular toda essa mathematica no verso longo ou fazer caber o mesmo thema num verso curto

Nem fallo do eschema rimatico, porque tanto o ABBA/ABBA/CDC/DCD (quattro rimas), do primeiro soneto, quanto o ABAB/ABAB/CCD/EED (cinco rimas), do segundo soneto, offerecem, no computo geral, practicamente o mesmo grau de difficuldade: menos rimas num é desafio compensado por menos palavras noutro. Fallo daquillo que mais concentra a attenção do poeta: é preferivel rhythmar o verso ou synthetizar a phrase?

Vamos pôr ambos na balança. O alexandrino tem a vantagem de possibilitar maior detalhamento da phrase, alem de fazel-a caber toda num só verso ("estichomythia" se chama esse ajuste), emquanto a redondilha tem a vantagem de facilitar a declamação e a eventual musicalização, ainda que exija um ou outro enjambamento para accommodar phrases mais longas, como o proverbio "Quem primeiro sentiu...".

Caso o poeta valorize mais o poder de synthese, é claro que o sonetilho seria o molde mais meritorio. A solução thematica ficaria, portanto, acyma da solução mathematica. Isso dá panno p`ra manga, não acham?

Si fosse assim, por que motivo os nossos parnasianos davam tanta importancia ao alexandrino, mais que ao decasyllabo ou à redondilha? Só para imitar os collegas francezes? Na França o soneto sempre foi mais dodeca do que deca, ao contrario da Italia, da Hespanha ou de Portugal. Na epocha do parnasianismo, Paris era realmente a capital do mundo, e tal. Os poetas francezes, alem do mais, se destaccavam pela maldicção thematica e existencial, dahi o fascinio que exerciam nos collegas daqui. Emfim...

Quanto a mim, sempre fui mais fan de Gregorio e de Bocage que de Rimbaud ou de Baudelaire. Fico, pois, à vontade para practicar o alexandrino occasionalmente, e não compulsoriamente. Quanto a vocês, fiquem à vontade para desconsiderar toda a minha argumentação, ja que, ao fim e ao cabo, o que importa é que o proprio thema seja solucionado na forma mais clara e intelligivel. A menos que o poeta goste de complicar. Gosto é gosto, não acham?

* * *
[Attenção! Quaesquer textos assignados por Glauco Mattoso estarão em desaccordo com a orthographia official, pois o auctor adoptou o systema etymologico vigente desde a epocha classica até a decada de 1940.]
Glauco Mattoso (paulistano de 1951) é poeta, ficcionista e ensaísta, autor de mais de trinta títulos, entre os quais as antologias "VÍCIOS PERVERSOS: CONTOS ACONTECIDOS" e "POESIA DIGESTA: 1974-2004", além dos romances "MANUAL DO PODÓLATRA AMADOR: AVENTURAS & LEITURAS DE UM TARADO POR PÉS" e "A PLANTA DA DONZELA".
E-mail: glaucomattoso@uol.com.br
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1 comentários para Glauco Mattoso e arte de fazer gaiolas

  1. Muito bom! Sou fã desse cara.

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