Leitura Musical sobre a banda Eletrocactus e o disco O Dia Em Que A Fome Morreu De Sede - I Parte
Por Antonio Filho
Mas não foi para me matar de saudades que iniciei esta postagem. Na verdade, o assunto nasceu ainda há pouco ao ouvir, no velho aparelho de som da sala, a guitarra sofisticada e cristalina de Gledson Rocha. Esse jovem e extraordinário guitarrista, no entanto, sem perder a fundamental característica de uma boa dose de sujeira e distorção, é o comandante das cordas da banda Eletrocactus.
Eletrocactus é um capítulo à parte na minha série de casamentos musicais. Pois estive próximo da banda desde seu início, quando ainda se chamava pelo feíssimo, embora bem intencionado, nome de Projeto Cactus. Nessa época (já com o novo e elétrico nome), cheguei a ser integrante da banda, participando dos ensaios domingueiros no CSU do Conj. José Walter, tocando e errando mais que tocando, triângulo e pequenas percussões nos primeiro e improvisadíssimos shows, nos bons e velhos tempos dos antigos barzinhos (que ainda resistem!..) da Av. 13 de maio.
A banda Eletrocactus, depois de um EP e de uma série de shows esparsos por calouradas, eventos sociais de juventudes, festivais, uma participação no DVD da Natura em 2006 e programas de TV, ressurge apoteótica com o seu primeiro disco de estúdio O Dia em que a Fome Morreu de Sede , que teve lançamento oficial este ano no dia 10 de junho, nos jardins do Teatro José de Alencar. O disco inteiro é cheio de surpresas. Destaco abaixo minhas impressões sobre as composições do disco seguindo a sequência do encarte:
Calango Eletrônico
Abre o disco com letra composta por Antonio Filho (este desorganizado blogueiro) e música de Gledson Rocha. A música, além de contar com a execução primorosa da banda, abre o disco com a força de uma música dançante e alegre. A letra cheia de quebras rítmicas explora textualmente as emboladas, as loas de maracatu, o coco e o baião, ao que a música não deixou de corresponder, somando, à óbvia matriz de literatura popular que a letra se inspira, as influências do que há de melhor na música pop, o rock'n roll, o jazz, o blues e uma levíssima pitada de música eletrônica. Calango Eletrônico é pra colocar todo mundo pra dançar e é uma espécie de microcosmo estético de todo o disco.
Soneto do Asfalto
Também com letra de Antonio Filho (o blogueiro que fala com com alienígenas) e música de Gledson Rocha. Na sequencia de Calango Eletrônico, Soneto do Asfalto surpreende, pois quebra a expectativas dançante da primeira que talvez só seja retomada mais duas vezes no disco todo. Credito isso à intenção da banda em deixar clara sua preferência por letras de alta elaboração estética, pois como o próprio titulo diz, a letra é um soneto que faz parte de Catorze, livro só de sonetos inédito do autor. A música é primorosa, de um lirismo tão pungente nos vocais de Gleucimar Rocha e Roberto César que quase se contradiz com a violência explícita no texto do poema. O dulcíssimo violão de Gleucimar Rocha e a guitarra cheia de riffs marcantes de Gledson Rocha harmonizam-se perfeitamente ao baixo suave, e ao mesmo tempo tenso, de Wesdley Vasconcelos, e à bateria de Mauricélio Lima que cria um clima obsessivo de suspense como a prever uma explosão. A violenta explosão de aço, fumaça e sangue do soneto. Uma música perfeita pra trilha sonora de filme. Aliás, parece que toda o disco tem essa característica, como se ele estivesse contando uma estória, até mesmo adotando a devida distância entre as lentes da câmera e a cena.
O Dia em que a Fome Morreu de Sede
Letra e música de Wesdley Vasconcelos. É a canção que dá título ao disco, é um mistério isso. Mas é possível supor que seja pelo caráter dual que ela tem, de um lado o baião elétrico e dançante das guitarras em oposição ou contraposição ao lírico maracatu nos vocalizações em plano de fundo da lindíssima voz de Gleucimar Rocha. A letra retoma o discurso da relação seca-fome-sertão-sede, em expectativa da profecia que se realizará fazendo sertão-mar e mar-sertão. Uma outra dicotomia que se pode inferir à canção é o baião sertanejo, sujeito à seca e à fome em paradoxo complementar ao maracatu urbano, a capital de Fortaleza alvo da miragração.
Ver Viajar
Letra de Gleucimar Rocha e música de Gledson Rocha. Abre a série de composições de letras exclusivas de Gleucimar. A letra aqui é um ponto que requer uma atenção especial. Gleucimar como sempre escreve letras de um delicadíssimo lirismo, de uma poesia rica de expressão. Aqui reaparece a sensação de cinema, tudo é registro visual de grande poesia. A primeira estrofe lembra uma câmera registrando as imagens que se sucedem pela estrada, sinestesicamente em cores, odores, sons e texturas na “flor de maracujá”, no “silêncio dessa estrada”, na “viagem de lago azul”, no “rosa manga imponente”. A letra de Ver Viajar é um pequeno universo de achados poéticos, algumas vezes desconcertantes como o do verso “E o peixe daqui transeunte”. Um outro recurso estilístico muito bem utilizado por Gleucimar Rocha em ver Viajar é a antítese dos versos “E as coisas distantes paradas/Saudades de imagens recentes”, é inevitável, ao ler e ouvir esse trecho e não lembrar do “museu de grandes novidades” do Cazuza. Sem dúvida nenhuma a letra de Ver Viajar, tanto quanto seu correspondente musical, é de rara qualidade poética.
Cine Fome Mulher
Mais uma parceria dos irmãos Rocha. Letra de Gleucimar e Música de Gledson. A música inteira é impressionante, é uma espécie de manifesto feminino musico-cinematográfico. Não é preciso dizer que sendo uma letra de Gleucimar Rocha, Cine Fome Mulher é uma letra de qualidade literária superior e de um discurso poético poderoso. E essa potência mais se ressalta com a participação especial de Jácio Cidade. Jácio, como tudo o que ele toca, dá uma dimensão de poder e virilidade com a sua voz metálica e potente. O casamento das vozes de Jácio e Gleucimar em Cine Fome mulher se harmonizam pelo paradoxo, é a antítese, é a profunda antinomia e necessidade mútua, entre homem e mulher, entre música e cinema, entre o cinema profundamente masculino de Glauber Rocha e o discurso pessimista sobre um certa dimensão da feminilidade até hoje sufocada por um mundo ainda essecialmente masculino. Na opinião deste desorganizado blogueiro, Cine Fome Mulher é uma das melhores composições de todo o disco. Melhor pela proposta musical, pela (sempre) excelente letra de Gleucimar Rocha, pela excelente execução instrumental e pela feliz escolha da parceria de Jácio Cidade que é um dos mais poderosos e criativos artistas da atualíssima música cearense.
Fogo do Sertão
Letra e música de Gleucimar Rocha. No entanto, peço um parêntese por uma questão de justiça, é preciso dizer que este blogueiro que pratica a interlocução alienígena também tem participação na letra dessa música. Pode-se argumentar que foi apenas seis versinho finais, tudo bem, admito, a participação foi mesquinha, mas merece ser registrada, não? Porém, voltemos à matéria e deixemos de lenga-lenga autoral. Fogo do Sertão reabre o capítulo dançante da proposta estética da banda Eletrocactus. Não sei o porquê de um descabido pudor, que, um certo tipo de cultores da música popular brasileira têm quando se fala sobre música de pista. Não vejo nenhum problema nisso, Wilson Simonal com o seu Pilantragem e Chico Science&Nação Zumbi com o seu Manguebit, sem nenhuma concessão para com a qualidade musical de sua obra, praticamente dominaram os pickups das boites nos anos 60 e 70 com Simonal e, depois, no anos 90 com Science. Da mesma forma de Calango Eletrônico, também “O Fogo do Sertão é assim, passa no repente e se alastra”, une perfeitamente excelente qualidade literária e musical a uma proposta de música de pista que mexe bem com o corpo e com a alma.
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Amig@s, encerramos por aqui a primeira parte dessa crônica musical sobre o disco O Dia em que a Fome Moreu de Sede. Espero que estejam gostando até aqui. Se sim ou se não, adquiram o cd da Eletrocactus e confiram vocês mesmos. E para os que estiverem afim, amanhã postarei a segunda parte desta leitura musical.
Adorei. Espero a 2ª parte...pois as outras músicas que você ainda não falou são tão lindas quanto essas. Parabéns!!